miércoles, 9 de febrero de 2022

Como pudemos

Como pudemos
viver? Os olhos múltiplos e insones
de Medusa fixos em nós à espreita.
As bocas das metralhetas
apontando-nos. A censura
postal —fatídico agoireiro—
lendo as nossas entranhas.
Os sacristaos pasando lista
às portas das igrejas. Nos cafés,
os contertúlios anotando
as nossas reacçons perante
as notícias do rádio.
Clitemnestra na cama.
Na escola, os nossos fihlos aprendendo
a condenar-nos, a
desprezar-nos, a
denunciar-nos, a falarem na língua
com que insultados fomos e julgados
réprobos, e na qual foi estendida
a acta que nos levou
ao paredom, ao cárcere, ao desterro;
a língua com que nos indultaron
para nos reinserir arrependidos
no mundo que quigéramos
substituir. Muitos morrerom, mas
non falo agora desses mortos; falo
dos que tiverom que viver morrendo
entre os seus matadores, lendo a imprensa
que de lama os enchera, saudando
as insignias conta as quais militaram.
Como pudemos
viver? E mais vivêmos.
E comêmos, dormímos, engendrámos

crianças: se havia quê comer, se havia
leito para dormir ou para amar.
E é que, assi como o home sossegado,
bondoso e cortês, pode
converter-se em malvado,
besta cruel; e a mulher terna e fina,
em selvagem ouveante alimária:
assi tamém o home inquieto,
íntegro e valoroso pode
transformar-se em sofrida
besta de carga ou tiro, e a mulher
que as teias acendia da vitória,
em abatida fêmea
de miserenta espécie soterranha.
Assi hienas e vermes,
formas de desumana humanidade,
encarniçam-se, arrastam-se.
Nom haveria lobos
se nom ouvesse anhos.
Milhafre e pomba todos podemos ser.
Isso é ser home: humilhar ao home
ou humilhar-se perante o home. Todos
podemos humilhar-nos e humilhar.
Isso é ser home. Mister seria
para nos prevenir de sermos
bestas depredadoras ou servis,
conquistar umha faísca
de lume prometeico e ser
um pouco deuses, home e deus à par,
na força e na renuncia;
mas isso só é possivel
sobranceando o humano,
cando águia é a hiena, e anjo o verme,
sobre a terra a voar,
segundo a desumana fórmula
de Friedrich Nietzsche ou de Cristo Jesus.

Ricardo Carballo Calero: Reticências (1986-1989) (1990)

Versións:

Menina Arroutada: Repróvovos; Musicando Carvalho Calero* (VVAA); 2020; Pista 60



*[Concurso musical organizado pola AGAL (Associaçom Galega da Língua) en colaboración coa CRTVG e a Consellería de Cultura da Xunta de Galicia, para conmemorar o ano das Letras Galegas 2020, adicado a Ricardo Carballo Calero.]

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